Fazer a audiodescrição de esculturas foi, para mim, um grande desafio, principalmente pelo fato delas serem representações de monumentos já existentes, como foi o caso das esculturas de Simone Kestelman, que representaram ou, por que não dizer, re significaram, interpretaram, traduziram, as obras arquitetônicas do teatro popular de Niterói (RJ), do edifício Copan e da Oca do Ibirapuera (SP). Poderiam me perguntar, qual a diferença entre audiodescrever uma escultura /criação e escultura / representação. Pois bem, do ponto de vista plástico (descrição dos planos, curvas, cores, texturas, etc), nenhuma, mas do ponto de vista filosófico, faz muita diferença. Aquelas esculturas de Simone são representações de outras obras de arte. A artista passou por um processo de abstração, que resultou em novas obras, belíssimas, por sinal. Meu trabalho como audiodescritora é buscar a objetividade, enquanto uma imagem busca em nós, a subjetividade. Esse por si só é um conflito e ele aumenta no momento em que, tendo na memória a obra primeira, devo audiodescrever a nova obra, a escultura. É por isso que digo que é um problema, do ponto de vista filosófico, pois estou no meio da maneira pela qual o espectador cego encontra essa obra de arte. Momento que deveria ser solitário ou privado. Sempre pedirei desculpas às pessoas com deficiência visual por essa “intromissão”! No cinema, isso não me afetou tanto, pois as imagens em movimento são constantemente substituídas por outras, sem nos deixar tempo para refletir. Qualquer que seja o objeto do olhar, deve haver uma audiodescrição para complementar nosso entendimento, pois a descrição do visível é o melhor dos desafios, é o gesto da palavra, é como se déssemos à imagem um gosto e um perfume. A descrição do visível pode levar o homem a se confortar na loucura, a se confrontar com a paz. É puro deleite dos sentidos. Fechem os olhos e boa viagem!
Ouça a entrevista:
Eliana Morato: Olá a todos, meu nome é Eliana Morato e hoje eu tenho a satisfação de conversar com Bell Machado, coordenadora do ponto de cultura Cinema em Palavras, de Campinas, e que foi uma das pioneiras no país, a trabalhar fazendo audiodescrição. Olá Bell! Bell Machado: Olá, obrigada pela oportunidade. Eliana Morato: Bell, como eu disse a pouco, você foi uma das pioneiras no Brasil a dar início a este trabalho maravilhoso de permitir aos deficientes visuais experenciar a sétima arte. Bom, pra começar este nosso bate-papo, eu gostaria que você nos contasse um pouco dessa sua experiência no ponto de cultura. Com que frequência ocorre as sessões e como tem sido a participação, a recepção do público no decorrer desses anos? Bell Machado: Bom, vamos lá. Eu fui convidada para fazer audiodescrição de filmes no ano de 2000, no Centro Cultural Braille de Campinas. Nesta época eu fazia faculdade de Filosofia na Unicamp e eu estava estudando o filósofo Denis Diderot – iluminista que havia escrito a Carta sobre os cegos – e comecei a estudar sobre essa carta, na qual ele investigou um cego congênito que passou a enxergar depois da operação. Eu estudava com o marido da coordenadora do Braille. Foi uma coincidência. Como eu sou professora de história do cinema, ele perguntou “Você não quer passar uns vídeos para pessoas com deficiência visual?”. Eu falei “Nossa, que estranho. Bom, vamos!”. Enfim, fui, me envolvi e até hoje estou lá. Quando eu entrei no Centro Cultural Braille é importante dizer que é uma atividade que já existia lá, não tão regularmente, mas já faziam mensalmente o cinema narrado para pessoas com deficiência visual, há um ano, portanto desde 1999. Então eu entrei e comecei a estudar filosofia com eles, levar textos sobre estas questões das metáforas óticas e passar semanalmente filme com audiodescrição. Fiquei até 2005. Em 2005, participamos do Edital do Ponto de Cultura. Foi o primeiro edital de Ponto de Cultura. Fizemos o projeto e por dois anos fomos contemplados com uma verba para fazer a estrutura do laboratório de informática com acessibilidade para pessoas com deficiência visual, enfim, fazer a inclusão digital também. Nessa época do Ponto de Cultura, 2005,2006 e um pouco de 2007, ou seja, com a verba, nós passávamos quatro filmes por semana com audiodescrição. Foi um período muito intenso. Filmes europeus, filmes brasileiros principalmente, e alguns filmes de ponta que passavam na época e eles queriam, tipo: Harry Potter, Senhor dos Anéis, enfim, algumas coisas assim. Eram audiodescrições ao vivo. Em 2007, de 2008 pra cá, com falta de recursos, a gente não está fazendo tão periodicamente as exibições, infelizmente. Estamos em busca de captação de recursos para que eu possa voltar a trabalhar semanalmente. Mas agora a gente faz no Ponto de Cultura, uma vez por mês, e no MIS (Museu da Imagem e do Som de Campinas), onde eu dava aula de cinema até o ano passado, a gente faz as sessões também uma vez por mês com audiodescrição. Eliana Morato: Bell, falando agora da exposição das obras de Simone Kestelman, que na verdade, fizeram parte da mostra da Casa Cor de São Paulo, ocorrida entre os meses de maio a junho deste ano, bom, nos emails que trocamos, você me confessou ter sido um desafio audiodescrever as esculturas, mais até do que audiodescrever filmes. O que torna a tarefa de audiodescrever algo estático, mais complicado do que algo em movimento? Bell Machado: Olha, é um mistério. Não sei exatamente. Acho que é assim: a priori, quando a gente fala em fazer audiodescrição de algo estático, parece que é muito mais simples. Primeiro, porque você não tem o problema do tempo. Claro, você não vai se ater muito tempo sobre aquela peça, escultura ou quadro, mas parece que vai ser algo mais tranquilo. E eu pensava assim também. Mas quando fui fazer as peças da Simone, eu entrei num conflito muito grande. Primeiro, porque eu trabalho muito com arte. A minha formação é filosofia, então esta questão do olhar, pra mim, é algo muito complicado. É muito difícil ser claro e objetivo, porque quando nós vemos uma coisa, nós vemos do nosso modo. Não quer dizer que a coisa não seja aquela em si. É o nosso olhar que está vendo aquelas características. Então tem aquela questão do mundo das ideias e o mundo real. No caso da Simone Kestelman, as esculturas que descrevi, foram esculturas sobre obras arquitetônicas. Era a representação delas; era a representação da representação e eu me vi com uma dificuldade de sintetizar esta informação. Sintetizar, por exemplo, o edifício Copan, em São Paulo. É um bloco tortuoso, em forma de onda, mas eu não tenho como dizer claramente e objetivamente, em poucas palavras, a informação que dê aquela ideia. Mas quando foi que me senti mais em conflito ainda? Quando eu fui fazer a revisão. Todo trabalho que faço, pelo menos para audiodescrição gravada, tanto em filme, como de objetos, eu tenho dois revisores com deficiência visual, dois profissionais que fazem a revisão final do roteiro de audiodescrição. Eles que vão dizer se, naquilo que eu disse, algo ficou não entendível. E quando eu passei essa revisão das peças para eles, a gente viu junto, a grande dificuldade de descrever uma obra de arte. Eu não sei se é algo pessoal meu. Para mim, é muito mais fácil descrever o Harry Potter, que é algo que está em movimento, que está dentro da minha linguagem do audiovisual, do que a imagem estática. Não sei te dizer por quê. Eu achei muito mais difícil, talvez porque eu tenha me cobrado muito mais. Mas ficou um trabalho muito bom, super legal e todos gostaram. Mas eu ainda acho que eu poderia fazer de outra forma. Eliana Morato: Bell, falando agora sobre outro assunto, em seu artigo “A linguagem cinematográfica na audiodescrição”, você defende a ideia de mostrarmos às pessoas com deficiência visual os artifícios de montagem utilizados para dar o sentido do filme, ou seja, mostrar que um certo movimento de câmera, uma certa articulação de planos, produz um efeito no espectador. Bom, eu particularmente adoro esse seu artigo e concordo em gênero, número e grau com você. Também penso que a apropriação dos elementos fílmicos propicia um melhor entendimento da obra e das intenções do diretor. Por outro lado, temos visto alguns pesquisadores dizerem nos guiãos de audiodescrição, que devemos evitar o uso da linguagem fílmica. E aí, como ficamos? Usamos ou não? Bell Machado: É uma polêmica. Eu gosto quando esta ideia é colocada à prova porque me faz pensar ainda mais sobre ela. Eu posso responder esta pergunta de várias formas. Primeiro eu não sei quem são esses pesquisadores, no sentido de que, será que eles conhecem a linguagem cinematográfica? Será que eles já estudaram a história do cinema? Será que eles são cinéfilos, estudaram, gostam realmente de ver muitos filmes? Não que, se eles não gostarem de cinema, de estudar cinema, eles não estão aptos a responder isto, a fazer audiodescrição, de forma alguma. Mas esta é uma pergunta que me passa pela cabeça. Será que para eles o cinema é só entretenimento ou eles entendem que o cinema é uma linguagem que serve como ferramenta de comunicação? Estas são algumas perguntas. Se sim, se eles gostam de cinema, já estudaram cinema e tudo mais e eles ainda acham isso, é uma opinião. É mais fácil, realmente, você fazer uma audiodescrição, sem usar esses termos. Mas eu vejo a audiodescrição da seguinte forma: se eu quero inserir culturalmente, se eu quero fazer uma inclusão cultural de pessoas com deficiência visual no cinema, eu tenho que fazer uma inclusão do que significa aquela cultura de ver filmes. Se um diretor (aquilo que você mesma disse), se ele coloca ali, mais do que uma imagem em si, que ele quer representar – eu cito até o Construtivismo Russo quando eu escrevi este artigo – O Eisenstein, se ele coloca que é importante a mudança de câmera, de cima para baixo, de baixo para cima, para falar da hierarquia, da diferença de classe social, quando ele muda, mostrando o povo aqui embaixo e o ditador lá em cima, se ele mostra isso, a articulação de planos para dar o sentido do filme, que direito eu tenho de omitir isso do espectador cego? Eu não tenho esse direito. Se eles vão entender, assim como quem enxerga pode não entender o que o Eisenstein quis dizer, mas eu tenho que dar oportunidade da pessoa com deficiência visual saber que existe algo além da imagem que está ali. A maneira como o diretor colocou aquela imagem. Eu tenho que dar esta informação. Claro, que tirar, hoje, eu começar a inserir esta linguagem, de uma hora para outra, é claro que não vai ser bom. Por isso que eu indico a educação visual. Começar paulatinamente a falar do zoom, do close, colocar essa linguagem em todos os menus de DVDs com audiodescrição, para que um dia, a gente possa falar. Não que seja obrigatório falar: primeiro plano, segundo plano, nada disto, porque pode até ficar artificial. Mas a gente tem que dar esta educação visual, da linguagem cinematográfica para a pessoa que quer se incluir culturalmente no cinema, porque a linguagem cinematográfica é cinema. Eliana Morato: Bell, pra gente fechar, qual sua análise do atual cenário da audiodescrição no Brasil? Quais pontos você vê como positivo e o que ainda falta ser feito? Bell Machado: Pelo que eu tenho conversado com os colegas audiodescritores e pessoas com deficiência visual, tem alguns aspectos que a gente analisa e minha opinião não é muito diferente dos outros. Claro, que bom que finalmente a lei está efetiva e começaram as duas horas. Aliás, era para serem duas horas diárias, até ano passado, mas agora são duas horas semanais. Que bom que começou. É a oportunidade de a gente ter um pouco de programação. É a oportunidade, principalmente, de a gente entrar nos lares de pessoas com deficiência visual que estão alienadas, segregadas, escondidas por suas famílias. Mas será que estas pessoas têm como receber essa informação? Têm televisão? A gente que tem televisão e tem uma certa informação, não consegue acessar a tal da tecla SAP. Está tudo sendo feito de qualquer jeito. É claro, que bom que começou, mas não tem como discutir a precariedade da maneira como isto entrou na televisão. Para mim, eles tinham que ficar dando esta informação a cada comercial para a sociedade saber que existe audiodescrição na televisão. Não só para as pessoas com deficiência visual saberem disso, ou nós, que enxergamos e trabalhamos com isso. Tinha que ser uma informação em plano nacional. É uma coisa tão importante, eu não sei por que está sendo escondida. Ninguém conversa, ninguém ouviu falar. Está escondido e todo mundo vê muito televisão. É uma pena que um país que esteja nas condições que a gente está, com tantas coisas avançando e caminhando, a gente ainda está engatinhando. É uma tristeza. Eu estou ainda muito triste com tudo isso porque a gente sabe que as televisões têm potencial para fazer muito mais, que o poder público poderia fazer muito mais. Eu não entendo, não existe nenhuma explicação que justifique essa inércia do Estado. Eliana Morato: Esperemos que essa criança deixe de engatinhar e comece a caminhar a passos largos rapidamente. Bell Machado: Eu acredito que sim, porque cada vez mais isto está aumentando. Nós não desistimos, nem audiodescritores, nem pessoas com deficiência visual. Agora é importante, fundamental, isto estar na televisão para ampliar para outras esferas e fazer com que as próprias pessoas com deficiência visual comecem a conhecer, porque muitos não conhecem, e daí, por se próprios, lutarem para que a gente não precise mais mediar nada. Enfim, este é o grande objetivo. Eliana Morato: Bell, prazer enorme falar com você. Muito obrigado pela entrevista. Bell Machado: Eu que agradeço. Eliana Morato: E a você que está sempre aqui conosco, nosso obrigado e grande abraço.