Este mês a MIDIACE traz a exposição OLHA POR MIM, que além das belíssimas obras da artista Mirtilo Gomes, nos apresenta a mais nova modalidade de audiodescrição, criada em terras lusas, batizada de Soundpaiting. Como se poderá ver na exposição, aquilo que diferencia o Sounpainting da audiodescrição convencional é a abordagem deliberadamente poética e multimodal. Explora-se a linguagem, a voz, os efeitos sonoros e a música para recriar obras de arte visuais de forma expressiva. A técnica permite que a pessoa cega crie uma imagem artística mental da obra que lhe é dada e permite ainda que a pessoa com visão normal ative os seus sentidos na exploração das imagens que recebe através da visão. Para além da linguagem poética e das nuances sonoras, explora-se ainda a multissensorialidade e, sempre que possível, recriam-se as imagens em formato tátil para que as pessoas (cegas ou com visão normal) possam "ver" com as pontas dos dedos à medida que ouvem o Soundpainting. Esta modalidade de AD tem sido muito bem recebida tanto pelos seus utilizadores como pela comunidade científica, tendo sido este conceito, já apresentado em várias conferências internacionais. Nossos agradecimentos especiais a Josélia Neves e Walter Marcos por terem dividido conosco este maravilhoso trabalho.
Ouça a entrevista:
Rodrigo Campos: Olá a todos os internautas que nos acompanham. Hoje eu tenho o grande prazer de falar com a professora Josélia Neves, autora do guia de legendagem para surdos, Vozes que se vêem e que agora, além da arte da tradaptação, vem desenvolvendo um trabalho riquíssimo também na área da audiodescrição. Tudo bem Josélia?
Josélia Neves: Muito boa noite, aqui de Portugal, para o Brasil.
Rodrigo Campos: Primeiramente eu gostaria que você explicasse para as pessoas que visitam o nosso site um pouquinho mais sobre esta nova modalidade de AD que é o soundpainting, técnica esta, aliás, ainda inédita aqui no Brasil. Nos e-mails que trocamos você me disse inclusive que este novo conceito será um dos temas da Conferência Media for All, a ser realizada no final deste mês no Imperial College London. Como tem sido a recepção deste novo trabalho Josélia?
Josélia Neves: Bem, o Soundpaiting nasceu relativamente há pouco tempo e nasceu ligado à pintura, à audiodescrição de arte bidimensional. Até este momento, a audiodescrição em Portugal estava essencialmente ligada ao cinema, ao filme, através do DVD e através das projeções em sala de cinema e nunca tínhamos feito audiodescrição de pintura. Os audioguias que existem nos nossos museus são audioguias tradicionais para pessoas normovisuais e não contemplam a audiodescrição. Então, quando tivemos a oportunidade de descrever quadros, pensamos que seria importante dar mais do que apenas a descrição, porque a descrição seria muito pouco, seria muito pobre; especialmente quando estamos perante a arte. Dizer apenas que há um retrato pintado a óleo, com olhos grandes, cabelo comprido, cabelo castanho; descrever não é suficiente para passar a emoção e a sensibilidade do artista. Então, com a ajuda de um grande amigo, que é o Walter Marcos, cheguei ao Soundpainting. Nós começamos a fazer experiências não só com as palavras, mas também com o som. Então, a idéia básica do Soundpainting é criarmos uma audiodescrição poética, acompanhada de música e com efeitos sonoros. E tudo em conjunto, criar no receptor, emoções. Porque todos nós, quando olhamos um quadro, nos emocionamos. Toca-nos para além do intelecto. E a idéia foi criar para as pessoas cegas e também para as pessoas normovisuais, novas maneiras de sentir a arte.
Rodrigo Campos: Josélia, você que é uma grande pesquisadora e conhecedora dos recursos de acessibilidade, não só para os cegos, bem como, para os surdos, eu gostaria de lhe pedir que respondesse a um internauta que nos enviou a seguinte pergunta:
O cego vai entender o que são missangas, canutilhos e lentilhas? Ou seja, eu devo pressupor que os cegos conhecem este vocabulário, ou devo evitar o uso de palavras mais técnicas ao criar o meu roteiro de audiodescrição?
Esta pergunta nos foi enviada pelo Victor Martins, da cidade do Rio de Janeiro.
Enfim, Josélia, tal como aquela lacuna linguística que se reflete numa leitura mais lenta por parte de algumas pessoas com surdez, no caso das pessoas cegas ou com baixa visão, é função também dos roteiros de AD reforçarem os conhecimentos linguísticos?
Josélia Neves: Sem dúvida! E uma resposta especial para o Victor. Nós temos que ter em conta que nós temos dois tipos de pessoas cegas: as pessoas que nasceram cegas e as pessoas que vieram a adquirir a cegueira mais tarde na vida. As pessoas que nasceram cegas, não por serem menos inteligentes, mas por terem menos oportunidades na escola, na vida, têm um vocabulário um pouco menos rico do que as pessoas que nasceram com visão e que fizeram sua escolaridade pela via normal. Mas isto não impede as pessoas cegas de estarem na posse de vocabulários muito ricos e de terem também conhecimentos e um desenvolvimento lingüístico que lhes permite trabalhar termos e léxico mais complexo. Obviamente que não podemos usar demasiado termos técnicos, porque nem mesmo as pessoas normovisuais, às vezes, os conhecem. Quanto mais simples, mais direta, mais expressiva for a nossa linguagem, mais interessante, mais fácil será para todos entenderem.
Rodrigo Campos: Josélia, voltando a falar do soundpaiting, que aliás, eu esqueci de dizer para o nosso público, foi uma técnica criada por você, é preciso ter nascido com alma de poeta para fazer audiosdecrição com poesia ou isto se aprende mesmo com técnica?
Josélia Neves: De poetas e loucos, todos temos um pouco, não é? Mas sim, precisamos de ter alma de poeta, mas precisamos, acima de tudo, de ter técnica. Não basta ser poeta, é preciso ter técnicas de descodificação da imagem. Precisamos de ter técnicas de reescrita. Precisamos de ter um grande domínio de nossa língua. Precisamos também de ter uma grande dose de sensibilidade e bom senso, e tudo isso se adquire com muito, muito trabalho. Fazer audiodescrição é uma arte, mas é também uma técnica. Fazer Soundpainting é conjugar todas as artes. É ir buscar conhecimentos de música, conhecimentos da arte de representar, conhecimentos da dança, conhecimentos de todas as coisas belas que temos na vida. E isso, aprende-se. Aprende-se a olhar a arte, aprende-se a interpretar e aprende-se a fazer.
Rodrigo Campos: Josélia, outra pergunta que sempre recebemos e eu gostaria de lhe pedir que respondesse para o nosso público: como a profissão do audiodescritor ainda não está regulamentada, qual o caminho para aqueles que desejam se especializar na área? Quais são os cursos oferecidos aí em Portugal?
Josélia Neves: Infelizmente a audiodescrição ainda não é muito ensinada. Aliás, o Brasil está muito à frente de Portugal a esse nível e aproveito para dar os parabéns a todas as equipes e todos os grandes audiodescritores que já existem aí na terra, nossa irmã, e que nos tem ensinado a nós, aqui em Portugal também. Para nos especializarmos, por um lado, podemos sempre fazer pequenos cursos, que vão acontecendo aqui e ali e podemos freqüentar cursos um pouco mais completos, especialmente no domínio da tradução audiovisual. Em Portugal, tanto quanto eu sei, em termos formais, apenas ensinamos audiodescrição no curso de Doutoramento da Universidade de Coimbra. O Doutoramento é em Tradução. E neste específico momento, começa-se a preparar um curso de pós-graduação em Tradução Audiovisual e acessibilidade. Temos também um curso de pós-graduação no Instituto Politécnico de Leiria que irá arrancar em setembro deste ano de 2011. Portanto, as coisas começam a aparecer numa forma mais concertada, mais formal e começa a haver sítios onde aprender, onde estudar a audiodescrição.
Rodrigo Campos: Josélia, foi uma honra enorme falar com você. Eu queria lhe dizer que nós aqui da MIDIACE somos seus fãs de carteirinha, viu? Desde aquela época em que recebemos seu livro, inclusive autografado. Eu fiquei muito honrado, muito agradecido.
Josélia Neves: Em breve receberão o segundo que se chama “Imagens que se Ouvem”, e é precisamente sobre a audiodescrição. Terei todo gosto em vos enviar e é uma honra estar a falar convosco. Um grande beijo para todos os amigos desse lado do oceano.
Rodrigo Campos: Ok. Muito obrigado de coração por ter falado com a gente.
Josélia Neves: Muito obrigada.
Rodrigo Campos: A você que nos acompanha, obrigado pela visita e agosto tem mais. Grande abraço.