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em 20/09/2011

Aos olhos de quem vê

Foto de Alisson usando um not book com fones de ouvido Foto de Alisson usando um not book com fones de ouvido

Reportagem especial apresenta um dos colunistas do Jornal Opção um homem que luta por autonomia e estabilidade desde que se entende por gente “É que vocês não sabem, não o podem saber, o que é ter olhos num mundo de cegos.” (José Saramago) Por e-mail, recebo alguns dos textos que serão publicados nas colunas do site do Jornal Opção. A terça-feira é o dia da "Homéricas, escrita por Alisson Azevedo”. São textos não muito longos, mas densos, de notada sensibilidade; crônicas simples; observações e esbarradas cotidianas. Até então, era tudo o que eu sabia. Como manda o manual do jornalista, eu quis checar uma informação que tinha recebido na semana anterior e, na última terça, Alisson veio até a nossa redação me encontrar. Havíamos combinado por e-mail mesmo e eu nem sequer havia citado o motivo exato para o encontro. Ele veio assim mesmo, solícito. Quando cheguei, ele já estava na recepção, falando ao celular. Nem olhou, mas me viu. Alisson Azevedo tem 29 anos, quase virando 30. Formado em Direito pela PUC, é servidor público concursado, técnico judiciário do TRE (Tribunal Regional Eleitoral). Tinha as unhas cuidadosamente feitas e, nos bolsos, três celulares incansáveis. Subiu as escadas de braços dados comigo e explicou, sem cerimônias, que era só eu ir andando que ele me acompanhava. A informação que eu havia recebido estava certa: ele não era um cego comum. Autonomia — Comecei a escrever para o Jornal Opção em janeiro e comecei com uma crítica de cinema. Alisson é um fã do cinema nacional. Mas isso foi mais uma consequência do que uma escolha. Ele tinha uns 13 anos quando o cinema o “pegou”. Foi ao cinema com os amigos, assistir “Terra Estrangeira”, do Walter Salles Júnior, e se impressionou com a trama, os diálogos, a música. Daí em diante, criou com o cinema, uma relação que chama de esquizofrênica. Assistiu a todos os filmes nacionais que encontrou. Na época, os filmes nas locadoras eram todos legendados. Depois, com a chegada do recurso da dublagem nos aparelhos de DVD, o cardápio cinematográfico aumentou. Sem poder ver as cenas, ele agradece aos filmes com o recurso da audiodescrição, no qual é feita uma narração das cenas silenciosas. O processo é auditivo, mas, fundamentalmente, intuitivo. Eu pergunto se há também um pouco de imaginação e ele responde que há pressuposição: uma colagem dos dados coletados durante o filme. Afinal, uma cena precisa de outros elementos além dos visuais. Mesmo assim, algumas cenas ele acaba perdendo. — Fazer o quê? Perdi a cena! Filme do Hitchcock mesmo... não tem jeito! Na era da internet, ele passou a escolher os filmes pelo que lê nos jornais. Sim, nos jornais, um hábito que cultiva desde cedo. Cego de nascença, devido a uma atrofia do nervo óptico, aos 7 anos Alisson foi alfabetizado em braile e os estudos e a leitura sempre tiveram espaço importante em sua vida. Nunca foi o melhor aluno, mas se recusou a permanecer em uma escola especial, preferindo ser educado junto às outras crianças na escola normal. O caminho mais difícil, escolhido por quem nunca se acomodou. O braile lhe proporcionou o acesso a muitos caminhos e, inclusive, foi o motivo pelo qual Alisson conseguiu o primeiro emprego: como revisor de braile, quando fazia o 3º ano do ensino médio. Entretanto, as possibilidades do sistema de leitura para cegos eram limitadas. O preço é alto, o tamanho é pelo menos um terço maior do que dos textos convencionais e o papel se desgasta mais rapidamente. O livro “Olga”, de Fernando Morais, por exemplo, tem 263 páginas no original e nove volumes na versão em braile. Um processo pouco provável para um jornal diário, por exemplo. Mas com o crescimento da internet e a chegada dos portais de jornais e revistas, o acesso à informação ficou mais fácil. — Não sou um cara high tech. Uso a internet como ferramenta. Para ler jornais e revistas, fui aprender informática. Graças a esses avanços, hoje, ele lê tudo que quiser. Seu computador pessoal possui um software que fala. Tudo o que aparece por escrito, tanto nos sites quanto o que o próprio Alisson escreve, é repetido em áudio. Ele configura se prefere a leitura por sílabas ou por letras, a velocidade da leitura. Com um aparelho de scanner comum, qualquer livro pode ser transformado em áudio e ser “lido”, com autorização dos direitos autorais e tudo. O processo é trabalhoso, mas funciona. Foi assim que Alisson concluiu a faculdade, primando pela autonomia. Essa é, inclusive, uma marca. Mesmo com a resistência e a preocupação da família, mudou de escola, depois mudou de cidade e veio morar sozinho em Goiânia, procurando sua independência. Ele queria estudar, trabalhar, sair sozinho, namorar. Mas sabia que teria uma autonomia relativa, já que acredita que a independência vem junto com o conhecimento da autolimitação. Alisson é enfático ao tratar dessa questão. Para ele, é preciso buscar autonomia para que as pessoas possam acreditar no que ele é ou não capaz de fazer, a partir do que imaginam. — O imaginário coletivo precisa disso. Precisa dessa visão do cego emancipado. E nós também precisamos, porque precisamos do imaginário coletivo. Se não, vamos viver como coitadinhos. Acho que a sociedade sai beneficiada e nós também, quando temos essa construção positiva. Acessibilidade Com certeza, isso foi parte do discurso e da coerência que fizeram com que ele fosse eleito como presidente da Associação dos Deficientes Visuais do Estado de Goiás, à qual pretende se dedicar nos próximos dois anos. Na mesma época em que descobriu o cinema, Alisson se descobriu “de esquerda”. Nunca quis aprender inglês porque tinha preconceito com o capitalismo estadunidense. Militou no movimento estudantil. E mesmo depois que seu “muro de Berlim caiu”, voltou a militar no movimento social. Ele acredita no papel social das pessoas com mais condições de adquirir conhecimento, um papel de vanguarda e de construção. Por isso, se engajou na defesa de direitos levantada pela associação. Mas Alisson não é ingênuo. Reconhece que os movimentos sociais estão inseridos em um “jogo de forças políticas como outro qualquer” e que não são mais movimentos de resistência, mas de prestação de serviços. Entretanto, não pretende dar atendimento aos associados, como faz a maioria das associações, pois acredita que isso é papel do Estado. O grande mote da associação que Alisson Azevedo defende é a melhoria da qualidade de vida das pessoas. — Somos mais ou menos deficientes dependendo da estrutura que se tem. Uma coisa é nascer cego em Goiânia, outra é nascer cego em Nova York, outra é nascer cego numa tribo Ianomâmi. Eu seria cego da mesma maneira, mas a vantagem ou desvantagem social, que a deficiência vai acarretar, é diferente. Assim como “autonomia”, “acessibilidade” é outra palavra forte no vocabulário de Alisson. Ao explicar a dificuldade em responder pelos interesses de pessoas que só têm a deficiência visual em comum, argumenta que o que os unifica é o acesso. Seja por informação ou por melhores condições no transporte público, o que todos buscam é a garantia desse direito. Ele cita os buracos nas calçadas de Goiânia, a dificuldade em pegar um ônibus, os sites em formatações que não permitem a leitura. Reclama do poder público, que não atende diretamente e nem dialoga com os interessados. — O mais importante é uma democracia que trabalhe a diversidade. No conceito clássico de que democracia é maioria, nós estamos excluídos. Eu sinto que existe uma subordinação e faria até essa análise de uma democracia que não está muito interessada nas minorias. Mas não podemos nos colocar como vítimas sociais. Na verdade, Alisson parece um pouco pessimista com o movimento social e confessa que seu posicionamento oscila quanto ao assunto. Mas mesmo sem cair no discurso messiânico de “vamos conseguir!”, por questões objetivas, ele acaba por acreditar. Porque, afinal, a situação já esteve muito pior com relação aos direitos da pessoa com deficiência. Hoje, há um desembargador cego no Paraná, outro cego na Subsecretaria de Políticas Públicas para o Deficiente, da Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República. Pessoas que fortalecem a imagem social da pessoa cega. Aceitação — Não só quem perde, mas quem nasce com a cegueira também tem que passar por um processo de aceitação. Cegueira é uma característica pessoal. Para mim, sou cego como sou baixo, não tem jeito de dissociar a cegueira. Até os 6 anos, Alisson já tinha sido levado a médicos, pastores, macumbeiros, mas ainda não entendia o que tinha. A compreensão só veio quando as outras crianças começaram a ir para a escola e ele não. Veio então o medo de “ficar burro”, medo que permanece ainda hoje. Mas o grande impacto objetivo da deficiência, o marco do que ele chama de processo de aceitação, veio mesmo na adolescência: vida social, sexualidade, paixões. Ele se resolveu arrumando emprego, uma bolsa de estudos e uma namorada. — Claro que essas coisas não se resolvem assim, a gente tem uma pretensão de passar a impressão de que foi tudo resolvido, mas não. Porque é tudo humano. Não estou falando só de cegueira, mas de existência. A minha posição sobre a existência é que é tudo muito precário. Mas você tem que dar valor a outras coisas, porque se não elas vão virar frustração. Estabilidade Ele não se frustrou nem quando deixou de fazer o curso que queria na faculdade. Preferiu a aridez do Direito à instabilidade do jornalismo. Prestou e passou em concursos e na prova da OAB, para não correr o risco de ficar sem emprego ou de precisar advogar e não ter condições. Ele conta rindo, como quem debocha de seus próprios medos, que suas escolhas pedem um ponto de partida, algo que fuja à instabilidade. — É uma coisa que me incomoda muito. Já tenho muitas instabilidades para lidar. Questiono se alcançou a estabilidade que procura e ele me responde, prontamente, que não. Apesar de estar no patamar que planejou para si mesmo, acha que, quando tiver 60 anos, vai pensar que tudo poderia ter sido diferente e, até mesmo, melhor. Por isso, foge à mediocridade. — Essa estabilidade, essa continuidade pode ser um risco. Mesmo dando segurança, ela pode conduzir à mediocridade. Viver é muito perigoso, como diz o Riobaldo. Por falar no Riobaldo, personagem de Guimarães Rosa em “Grande Sertão: Veredas”, quis saber se o homem por trás da Homéricas acreditava em Deus. Sorrindo, ele me respondeu que, como esquerdista, foi ateu, durante algum tempo. Mas uma mudança interna e “inexplicável” aconteceu e tem até uma frase do Riobaldo... Como é mesmo?! No dia seguinte, recebi um e-mail do Alisson e estranhei. Não era o dia da coluna dele. Mas fazia todo sentido e se encaixava perfeitamente com seu jeito didático e cuidadoso. Alisson me enviou o trecho esquecido e me deu as respostas para o que não cheguei a perguntar: “Como não ter Deus?! Com Deus existindo, tudo dá esperança: sempre um milagre é possível, o mundo se resolve. Mas, se não tem Deus, há-de a gente perdidos no vaivém, e a vida é burra. É o aberto perigo das grandes e pequenas horas, não se podendo facilitar — é todos contra os acasos. Tendo Deus, é menos grave se descuidar um pouquinho, pois no fim dá certo. Mas, se não tem Deus, então, a gente não tem licença de coisa nenhuma! Porque existe dor." (Guimarães Rosa). Fotos: Fernando Leite/Jornal Opção

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