Segunda reportagem da série analisa a falta de versões e espaços acessíveis na indústria do cinema para pessoas com deficiência
A sensível história do adolescente Leonardo rendeu ao filme Hoje eu quero voltar sozinho
uma das melhores bilheterias de filmes independentes no ano passado,
com 200 mil espectadores. Mas, apesar da deficiência visual do
personagem principal, o longa-metragem de Daniel Ribeiro entrou em
cartaz em formato acessível em apenas uma sala, em São Paulo. Com
auxílio do aplicativo gratuito WhatsCine, da ONG Mais Diferença,
ofereceu audiodescrição (serviço de narração do ambiente, expressões e
outros detalhes visuais), Libras (linguagem brasileira de sinais) e
Braille (linguagem tátil, para cegos).
Tropa de elite, Cidade de Deus, Carandiru e O pagador de promessas estão
entre os filmes nacionais preferidos do professor Antônio Carlos
Cardoso, da UFPE, mas, por ser surdo, ele não teve oportunidade de ver
no cinema. A dificuldade é regra nas salas de exibição de todo o país.
Poucas obras têm versões acessíveis e a maioria dos espaços não dispõe
de equipamentos, como headphones, para a exibição.
Em
Pernambuco, ficam restritas a festivais e sessões especiais.
"Acreditamos na acessibilidade a todas as pessoas. No Festival de
Brasília, o filme ganhou um prêmio concedido por pessoas cegas e ficamos
muito animados", explica Marcelo Gomes, diretor de Era uma vez eu, Verônica, um dos poucos pernambucanos com recursos para pessoas com deficiência, como Tatuagem, de Hilton Lacerda, e Ventos de agosto, de Gabriel Mascaro. O som ao redor, de Kleber Mendonça Filho, produção de maior projeção do estado no exterior, não tem versão acessível.
O longa pioneiro Era uma vez eu, Verônica foi
exibido apenas em sessões especiais para cegos e disponível em DVD,
pois nenhuma sala do estado conta com os equipamentos necessários. "Eles
devem fazer parte do patrimônio de cada sala. É questão de criação de
um novo comportamento dos produtores e das salas, mas o processo é
lento", acredita João Júnior. A audiodescrição de um filme de 100
minutos custa cerca de R$ 10 mil, de acordo com o produtor.
O
administrador aposentado e fundador da empresa ProAcessi Manuel Aguiar
estava no seleto grupo. "Eu já vi muitos filmes no Cine São Luiz com
audiodescritor de ouvir, ou seja, alguém cochichando, ou sozinho, quando
é algum filme de grande interesse para mim. Com a audiodescrição,
imagina a sensação de cidadania, participar integralmente, ser
respeitado no meu direito de usuário", conta ele, aos 67 anos. Em 2010,
ele viu pela primeira vez um espetáculo com a ferramenta, do grupo
carioca Os Inclusos e os Sisos, e foi responsável por intermediar a
turnê deles pelo Nordeste.
Principal ícone da luta pela acessibilidade para surdos em filmes em
Pernambuco, Marcelo Pedrosa lamenta não acompanhar a premiada produção
do estado. Surdo, ele criou a campanha Legenda para quem não ouve, mas se emociona,
há 10 anos, durante o festival Cine PE. "Eu me sentia excluído. Queria
acompanhar a produção premiada do estado e não podia. Os eventos são
muito segregacionistas", recorda o arquiteto.
Apesar do
engajamento, ele vai ao cinema só para acompanhar produções
internacionais e sofre com a popularização da dublagem. Em 2015, apenas
28% dos espectadores assistiram a cópias legendadas - as dubladas foram
59% e as nacionais, 13%, de acordo com a Filme B, especializada no
mercado audiovisual.
Marcelo pede legendas em português nos
filmes nacionais. O mais recente Edital do Audiovisual do Funcultura
obriga a produção de uma cópia com legendagem descritiva, Libras e
audiodescrição de longas-metragens e produtos para televisão apoiados
pelo fomento estadual, por exigência da Agência Nacional do Cinema
(Ancine). Resta torcer para a chegada deles às salas de exibição.