Isabel reforça que a imagem no cinema se comunica pelo conteúdo e pela forma como o conteúdo é captado. "O conteúdo é responsável pelo sentido lógico e racional. A forma de registro são os planos e movimentos da câmera. Por isso é muito importante uma audiodescrição que não se restrinja somente ao conteúdo da imagem, mas se estenda também à sua forma de comunicação, pois um dos objetivos da AD é aumentar o repertório imagético das pessoas com deficiência visual. Como audiodescritora de cinema eu não posso desprezar nenhuma dessas formas de comunicação". A pesquisadora salienta que a linguagem cinematográfica é importante na audiodescrição, para que o espectador possa absorver o sentido do filme, como apregoa o construtivismo russo de Einseinstein, "no qual a articulação dos planos é o que dá o sentido do filme".
A audiodescrição é um recurso de acessibilidade para cegos, mas também idosos, pessoas com dislexia, síndrome de Down, ou baixa acuidade visual. "É uma forma de registro a mais da imagem, então mesmo para quem enxerga, mas tem alguma deficiência intelectual, ter acesso a mais uma forma de registro é mais uma forma de compreensão". Na prática, o trabalho do audiodescritor consiste em descrever oralmente todas as informações visuais, sejam elas estáticas ou em movimento. Em um museu, o foco será os objetos, em um passeio turístico todo o ambiente ao redor. "Para que a pessoa cega possa conhecer uma obra de arte, como um quadro, uma fotografia ou mesmo uma escultura que não se possa tocar, é necessária a acessibilidade comunicacional, que consiste em promover, de algum modo, o acesso àquelas imagens, seja por meio da audiodescrição que pode ser em áudio guia ou impressão Braille, ou uma reprodução em três dimensões".
As imagens em movimento são um capítulo à parte. "Para acessibilidade de imagens em movimento como teatro ou cinema, somente o acesso sonoro não permite a compreensão do conteúdo e, por isso, o acesso às imagens por meio da audiodescrição é fundamental", ressalta. Sendo assim, na dança, o audiodescritor descreve o que se passa no palco, assim como no teatro e no cinema, quando a audiodescrição ocorre nos intervalos das falas. Usando ou não a terminologia própria do cinema, ela elabora um roteiro de AD, depois de estudar o filme e seu autor. A última revisão é feita por um cego. A audiodescrição pode ser feita ao vivo, como uma tradução simultânea, ou pode ser gravada. Com a Lei do Audiovisual, o recurso de acessibilidade passou a ser obrigatório para projetos que recebem financiamento público.
No entanto, Isabel ainda considera preocupante “a fragmentação das ideias sobre inclusão e acessibilidade nas escolas e nas universidades, cujas histórias mostram que, em grande parte, o ensino inclusivo tem sido pensado pelas áreas da educação, da assistência social e da saúde”, enquanto que, de acordo com a autora, deveria estar ocupando o debate também nas áreas das artes.
A pesquisa também discorreu sobre a aquisição do conhecimento das pessoas com deficiência visual, que ocorre de maneiras diferentes entre os que nasceram cegos e aqueles que perderam a visão no decorrer da vida, seja na infância ou mais velhos. "A pessoa que nasce cega constrói seus conceitos por meio dos sentidos, assim como os videntes. No caso de não ter o sentido da visão, seu processo de conhecimento das coisas se dá por meio da estimulação. Na elaboração do conceito de nuvem, por exemplo, uma audiodescrição do movimento das nuvens pode criar em cada pessoa cega diferentes ideias de nuvem, pois a associação de ideias ocorre de uma forma individual, ligada a vários fatores, inclusive às experiências na infância e à maneira como cada um foi estimulado". Uma nuvem branca, por exemplo, pode ser descrita com o apoio da manipulação de um pedaço de algodão, para que o cego associe a maciez do algodão à impressão visual do vidente ao olhar para uma nuvem.
A descrição das cores também é importante. "Quando se lê a história de Chapeuzinho Vermelho, e as crianças escutam a palavra “vermelho” sabendo que é uma cor, mas não a conhecem ou percebem pelo tato, a associam ao conhecimento que tiveram, por meio dos que veem, à cor da maçã, do morango e do céu no pôr ou nascer do sol".
Como descreve as imagens em movimento no intervalo das falas, um grande desafio para o audiodescritor é ser conciso e ao mesmo tempo conseguir passar um número considerável e importante de informações. Um grande paradigma para o audiodescritor é tentar ser claro e objetivo, enquanto o olhar não o é. Isabel sabe disso. Estudou filosofia, o cinema e o olhar, além de textos específicos que a inspiram, como “Carta sobre os cegos”, do filósofo e escritor francês Denis Diderot. Ainda em 1999, quando não se falava sobre o recurso no Brasil, assumiu a audiodescrição de filmes para os cegos que frequentavam o Centro Cultural Louis Braille de Campinas (CCLBC). O projeto se transformou em um Ponto de Cultura. Ao longo de 11 anos, a audiodescritora discutiu filosofia e cinema com o grupo de pessoas com deficiência visual.
Para desenvolver a pesquisa, Isabel ministrou um curso de cinema no Museu da Imagem e do Som (MIS) Campinas, para pessoas com e sem deficiência visual. "Um dos objetivos da realização do curso foi criar uma base de argumentação sustentada pela tríade conhecimento da linguagem cinematográfica, conhecimento da audiodescrição e formas de aplicabilidade para o público com deficiência visual". Isabel observa que o ambiente de discussão permitiu um avanço das ideias sobre a audiodescrição no cinema. Os filmes estudados foram exibidos com a audiodescrição ao vivo e, em alguns trechos, acompanhados com o roteiro de AD.
A autora da dissertação considera a audiodescrição como uma obra de arte, uma criação que é fruto de escolhas, de um olhar próprio. Quando, em uma de suas sessões de cinema, narrou para os cegos a saída de um personagem por um portão de ferro art noveau, descobriu, por meio da plateia, que ninguém havia explicado para aquelas pessoas o que era, ou como era o estilo art noveau.
Isabel Pitta Ribeiro Machado, autora da dissertação de mestrado: "É muito importante uma audiodescrição que não se restrinja somente ao conteúdo da imagem”De modo geral o universo visual não é apresentado aos cegos. Da mesma forma o conhecimento audiovisual do mundo. “Narrar o close do beijo, o close da lágrima escorrendo, é diferente de falar ‘ela está chorando’, ‘eles estão se beijando’. A pessoa com deficiência visual que desenvolve o simbólico e conhece uma imagem poética, tem a oportunidade de conhecer a arte e responder o que o cineasta Andrei Tarkovski finalmente pergunta: quem precisa da arte?".
Fonte: Unicamp